sábado, dezembro 13, 2014

Terceiro capítulo do livro "Delirium" em construção.

Alfa Centauro

"Eu já tirei tudo daí”. –  ela disse – E essas palavras eu ouvi"

 

No dia seguinte fui para o escritório. Acordei de ressaca. Em sonhos havia bebido quase toda cidade.

E Dinorá estava lá. Sinésio estava lá. José estava lá.

Todos que pensei que já não existiam estavam lá. E tudo era real, colorido, tinha cheiro e sabor.

Consegui um lugar na Van lotação. Alguns carros particulares faziam lotação para o centro. O preço era um pouco maior que uma passagem de ônibus e íamos cinco pessoas mudas e sonolentas no transito engarrafado para o centro da cidade.

Desci próximo aos escritórios da empresa; uma reunião sobre novos produtos para o mercado europeu estava marcada para as 9 da manhã. Antes, como de costume passei na Delicatessen para um café com Croissant.

Encontrei Fabíola no saguão do edifício empresarial.

“Doutor Fausto! Bom dia!”. – sorriu-me.

Entramos juntos no elevador; notei a maquiagem excessiva de minha secretária. E de como remexia sua bolsa incansável como se procurasse algo tão minúsculo que seria impossível encontrá-lo. Parou por um momento e dirigiu-me a palavra.

“O senhor sabia que os esquimós enxergam mais de cem tonalidades de branco?”.

Pensei nos ursos polares. Brancos.

“Fabíola, assim que chegarmos ligue-me com a central em Belo Horizonte, com Renato Almeida. Preciso de algumas informações sobre os novos produtos que irão para o mercado europeu”.

“Pois não doutor, assim que chegarmos”.

“A reunião está confirmada para as 9h?”.

“Sim senhor”.

Descemos do elevador privativo e dirigi-me a minha sala. Abri as persianas e fiquei por alguns minutos admirando o trânsito e a cidade que se via do 25º andar. As pessoas, os carros e o emaranhado de edifícios que se amontoavam uns por sobre os outros.

Atendi a ligação de Renato, de Belo horizonte, colhi todas as informações que precisava e fui para a sala de reuniões.

Lançaríamos no mercado europeu um novo tipo de shampoo e alguns cosméticos, produtos relativamente baratos para consumo de imigrantes latinos e asiáticos.

Entediado, ainda tive que conversar com membros da diretoria sobre uma possível transferência para Londres, onde coordenaria o escritório para os lançamentos futuros da Royalitt na Europa. A bem da verdade não queria ir morar na Europa. Dinorá não concordaria em abandonar a escola e as creches, seu emprego na Du Loren e toda ajuda beneficente.

Sentei-me à mesa com Doutor Arlindo. Ainda estavam presentes Fabíola, minha secretária, doutor Costa, do financeiro, Ângela, secretária de doutor Arlindo e Gomes, da publicidade e estratégia.

“Fausto, não conto com mais ninguém além de você para essa empreitada!” – disse doutor Arlindo.

 Sorri, de forma a mostrar que eu não me sentia à vontade para deixar o Brasil, mesmo que por dois anos, devido a todas as responsabilidades assumidas aqui.

“Arlindo, eu não sou o mais indicado para essa função. Posso cuidar da indicação de alguém mais gabaritado para essa abertura...”. – falei temendo que ele não se desse por satisfeito.

“Não!” – respondeu ríspido. Dirigiu-se a Gomes.

“Já definiram a estratégia de lançamento em Portugal?”.

“Contratamos uma empresa de Cascais. Líder de mercado; vende sorvetes para esquimós!”.

Lembrei do branco. Das tonalidades de branco. Dos ursos polares.

Enquanto ouvia as risadas ao fundo, pensava em sair dali e encontrar aquela pessoa.


No final de tarde, após deixar o escritório, passei na locadora e aluguei um carro. O meu carro estava em manutenção, na oficina.    Dirigi-me ao Centro de Convenções no centro. Cruzei ruas e avenidas congestionadas e brilhantes. Estacionei o carro no grande estacionamento aberto à frente do Centro de Convenções. Desci e fiquei encostado no carro por alguns minutos. Impaciente olhava o relógio nervoso.


Distraído


Adormecendo.
 

Acordei assustado com luzes brilhando intensas. Ainda estava encostado ao carro e percebi que havia cochilado em pé ali mesmo. Um zumbido alto quase como uma microfonia arrebentava meus tímpanos. Abaixei levando as mãos ao estômago, pois parecia que por dentro de mim um alien me comia os órgãos. E era exatamente isso que acontecia. Levantei a camisa e lá estava ele! Uma peste cabeluda que parecia ter dentes por todos os lados tentava abrir uma passagem por meu estômago dando mordidas e arrancando nacos de carne e gordura. Segurei-o apertado e o levantei diante dos olhos. Ele babava e deixava escorrer sangue, meu sangue, pelas bocas todas.

Atirei o bicho longe, praguejando contra todas as espécies de bichos peçonhentos.

Foi quando a luz ficou mais intensa e então notei que essa luz vinha de um objeto estupidamente indescritível. Uma maçaroca de ferros entrelaçados de cor ferrugem, que lançavam faíscas luminosas como soldas elétricas.

Olhei pra todos os lados procurando por alguém que pudesse ver o que eu estava vendo que entendesse o que eu estava entendendo, ali naquele pátio de estacionamento.

Tudo estava deserto e a noite já ia alta. Ao me afastar do carro, seu alarme disparou e os sons então se confundiam, dos ferros, do carro, da noite.

Parecia que eu estava de volta a algum lugar por onde já havia estado antes e só o que eu tinha certeza é que não havia saído do país e que a polícia provavelmente já descobrira os corpos de Dina e Sinésio. Caminhei em direção aos ferros, segurando a barriga que sangrava e deixava um rastro vermelho escuro no chão. Aproximei-me do que parecia ser uma...um...amontoado de ferros, e fui seguindo seu contorno. Cheguei a uma abertura por baixo do casco de ferros e realmente parecia um objeto ficcional de Spielberg. Tateei a procura de uma entrada, passando os dedos em suas frestas amassadas. Pensei depois de um tempo que podia ser uma brincadeira, alguém queria me deixar nervoso, ou que alguma equipe de cinema estaria filmando por ali e eu entrei no meio da cena. Mas aparentemente estava enganado. Uma porta se abriu.

Com aquele som típico de uma nave alien abrindo sua porta, com toda fumaça e vapor e ruídos de metais friccionados contra metais.

Fiquei no aguardo de algum grande ator de cinema sair por ali ou uma dessas gostosas que são sucesso de bilheteria. Mas o que aconteceu não é possível descrever. O que saiu por aquela porta superava em tudo meus piores pesadelos. Uma figura grotesca, redonda coberta de espinhos que retraiam em sua pele como se fosse sua respiração. Fiquei estatelado vendo aquele monstro saindo de uma bola enferrujada e retorcida de ferros sem acreditar que aquilo fosse possível.

Pensei comigo “Que diabos é isso? Estou sonhando?".

A figura saiu completamente do objeto e me fitou com aqueles olhos de ferro cintilante, que no escuro da noite pareciam labaredas adormecidas e faiscavam soltando pequenas luzes vermelhas amareladas.

Veio em minha direção e eu me afastava quanto mais perto ele chegava.

O que é você?” – perguntei.

O ser apenas ficou parado em minha frente hesitante. Achei que fosse ser devorado por ele e que ninguém mais saberia de meu paradeiro, nem a polícia, nem os inimigos nem as amantes.

Olhei para trás e lembrei do carro em que estava encostado. Corri em direção a ele e por um breve segundo olhei para trás, para ver o monstro. Tão rápido olhei, mas quando virei para o carro, ele já estava ali na minha frente e foi impossível parar, quando me dei conta, estava abraçado a ele, e ele fungava em meu rosto um hálito de fumaça e cinzas e então desmaiei.

A minha epopéia tinha início e a noite não poderia estar mais estrelada.  A luz da lua criava contornos prateados na pelugem metálica-pelúcia de meu estranho predador.

Ao acordar senti-me flutuando. Fui abrindo os olhos devagar e procurava saber onde estava, o que acontecia. O "ser" de ferro era macio e me carregava no colo para dentro de seu veículo. Abaixou-se ou encolheu-se, não sei ao certo e adentrou a porta que se abriu como se desmanchasse no ar. E dentro era um lugar gigantesco. Com outros "bichos" como ele passeando pra lá e pra cá. Ele me desceu alinhando-me ao chão e de repente eu estava ereto olhando para cima para a cara estranha da fera.

"Não vai perguntar o que está acontecendo?".
...

 "O que está acontecendo?". - perguntei.

"Você está em meu veiculo transportador."

Parei pra pensar e não vinha pensamento nenhum.

Perguntei: "Você tem um conhaque?".

"Sim. Venha".

Andamos o que me pareceu quilômetros até chegarmos a um lugar onde outros iguais a ele estavam sentados formando um círculo e todos pareciam rir e fumaça saia de seus sorrisos.

Eles estavam felizes e riam e olhavam pra mim e riam mais alto ainda. Eu estava engasgando com tanta fumaça sorridente que em determinado instante eu levantei e gritei: "Dá pra parar com essa festa?"

Todos pararam de rir na mesma hora e sincronizados rangeram os dentes de aço.

Meu amigo monstro tirou de dentro da barriga uma garrafa de bebida e jogou para mim. Olhei dentro dela e havia um botão de rosa. Abri a rolha e tomei um gole e foi a melhor bebida que havia experimentado em anos. Em segundos estava bêbado.

Ele falou sem pontos ou parágrafos:

"De onde venho você é um animal de estimação muitos de nós possuem um igual a você para brincar morder matar ou mesmo empalhar e deixar sobre a estante temos um processo de encolhimento que torna muito útil fazê-los pequenos para guardar na barriga ou transformar em amuleto e as fêmeas os usam para se masturbar esfregando-os com força na planta do pé e depois urinam sem parar por cinco dias e choram alto chamando-os pelo nome até que se cansem e os comem mastigando lentamente por mais cinco dias."

Fiquei boquiaberto. Por mais insano que fosse não conseguiria imaginar uma estória daqueles. Não contive a gargalhada e rolei no chão de tanto rir. Enquanto ria sem parar, os bichos ergueram-se e vieram para perto de mim. Todos tinham mais de dois metros de altura e eu me senti numa quadra de basquete do hospício. Meu amigo falou:

"Aqui é muito deselegante rir da raça".

Mas eu não conseguia parar. Perguntei: "_Onde estão as fêmeas?". E desandei a rir mais alto. Os bichos afiaram os dentes e as garras dos sete dedos. Não me preocupava se iriam me atacar ou me esquartejar.
De repente ouvi uma voz muito doce. Deitado no chão ainda sentindo a dor na barriga aberta e no fim das risadas, notei como eles iam se afastando, abrindo espaço para uma outra fera, uma fêmea me pareceu, senti pelo cheiro, que pensei, deve ser urina de monstro. E desatei a rir novamente.

"Você não sabe que quando ri nos mata?"

Fui levantando devagar, apoiando as mãos e o joelho no chão do "veículo transportador" e fiquei de pé. A doce monstro segurou minhas mãos, me puxou lentamente para perto. Agarrou-me abraçando e todo o seu pelo era suave, macio e quente. Sussurrou em meu ouvido. "Você não está louco".

Lembrei que tinha uma reunião, que havia uma reunião e não sabia se havia dito sim.

Ela disse que eu havia dito sim.
Falava dentro de minha cabeça.
Deu-me vontade de fazer amor com aquela criatura gigante então lembrei que ela sentia prazer na sola dos pés. Desvencilhei-me suavemente e abaixei-me. Ergui sua perna delicadamente e esfreguei a planta de seu pé. Ela foi caindo, ficando menor, seus pelos retraindo-se, sua pele tornando-se alva, seu cheiro adocicado e seus sussurros como gritos baixos e roucos, soltando fumaça pela boca e o cheiro da fumaça agora era de hortelã.

Ela foi aos poucos se transmutando, transformando-se em uma mulher, de pele clara, pele perfumada de murta, de lírios, avencas e mais hortelã. Quase desmaiei de tanto odor, de tanto perfume. Os outros monstros ao redor também foram se deitando e eu pensei que estava provocando algum êxtase coletivo de orgasmos monstruosos.

 

Ao final, estava eu também deitado acariciando os pés do monstro fêmea e quase adormecido. Meu amigo levantou-se de repente e disse que tínhamos que caminhar para "o lado". Assenti que sim e percebi que estava ainda em coma pelo orgasmo que havia sentido alguns minutos atrás.
Segui o amigo fera e enquanto caminhávamos, ele me contava sobre seu povo de Ava Garden. Disse-me que estavam de férias passeando pelo Universo e que suas férias duravam 100 anos. Já vinham a 90 anos procurando pelo planeta dos vermes humanos. Finalmente aportaram por aqui com muita sede.

Saímos do circulo de monstros e o sol estava a pino. Havia um campo verde que se estendia longínquo e ao final dele, um grande lago. Fomos caminhando o que pareceu uma eternidade. Ao nos aproximar, me deu vontade de cair na água e nadar um pouco. Tirei a camisa ensangüentada e as calças rasgadas, os sapatos carcomidos, as meias esburacadas e atirei-me nas águas mansas. Dentro d’água, após algumas braçadas, olhei meu amigo abaixar-se e enfiar a cara no lago. O que pareceu mais de meia hora ele ficou ali mergulhado. Senti que meus pés tocavam o chão do lago e que de repente a água estava em minha cintura. Notei os peixes pulando ao meu redor e muitos deles correndo em direção à margem. A água havia atingido meus tornozelos e eu gritei do meio do lago tentando chamar a atenção de meu amigo. Mas ele só parou quando não havia mais água nenhuma. E os peixes se debatiam e eram tantos que perdi a conta. Caminhei pelo lago vazio até a margem e praguejei contra aquela espécie Ava-gardiana morta de sede da porra!

Caminhamos lado a lado novamente em direção ao que parecia ser uma grande porta metálica e brilhante. Já próximos, ela se abriu lançando cinzas pelo ar e poeira. Ao sairmos, deparei-me com o estacionamento e meu amigo de metal fez um gesto de adeus desaparecendo por entre os ferros retorcidos e depois, flutuando de forma tão rápida, que levou segundos para desaparecer.

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