sábado, dezembro 13, 2014

Terceiro capítulo do livro "Delirium" em construção.

Alfa Centauro

"Eu já tirei tudo daí”. –  ela disse – E essas palavras eu ouvi"

 

No dia seguinte fui para o escritório. Acordei de ressaca. Em sonhos havia bebido quase toda cidade.

E Dinorá estava lá. Sinésio estava lá. José estava lá.

Todos que pensei que já não existiam estavam lá. E tudo era real, colorido, tinha cheiro e sabor.

Consegui um lugar na Van lotação. Alguns carros particulares faziam lotação para o centro. O preço era um pouco maior que uma passagem de ônibus e íamos cinco pessoas mudas e sonolentas no transito engarrafado para o centro da cidade.

Desci próximo aos escritórios da empresa; uma reunião sobre novos produtos para o mercado europeu estava marcada para as 9 da manhã. Antes, como de costume passei na Delicatessen para um café com Croissant.

Encontrei Fabíola no saguão do edifício empresarial.

“Doutor Fausto! Bom dia!”. – sorriu-me.

Entramos juntos no elevador; notei a maquiagem excessiva de minha secretária. E de como remexia sua bolsa incansável como se procurasse algo tão minúsculo que seria impossível encontrá-lo. Parou por um momento e dirigiu-me a palavra.

“O senhor sabia que os esquimós enxergam mais de cem tonalidades de branco?”.

Pensei nos ursos polares. Brancos.

“Fabíola, assim que chegarmos ligue-me com a central em Belo Horizonte, com Renato Almeida. Preciso de algumas informações sobre os novos produtos que irão para o mercado europeu”.

“Pois não doutor, assim que chegarmos”.

“A reunião está confirmada para as 9h?”.

“Sim senhor”.

Descemos do elevador privativo e dirigi-me a minha sala. Abri as persianas e fiquei por alguns minutos admirando o trânsito e a cidade que se via do 25º andar. As pessoas, os carros e o emaranhado de edifícios que se amontoavam uns por sobre os outros.

Atendi a ligação de Renato, de Belo horizonte, colhi todas as informações que precisava e fui para a sala de reuniões.

Lançaríamos no mercado europeu um novo tipo de shampoo e alguns cosméticos, produtos relativamente baratos para consumo de imigrantes latinos e asiáticos.

Entediado, ainda tive que conversar com membros da diretoria sobre uma possível transferência para Londres, onde coordenaria o escritório para os lançamentos futuros da Royalitt na Europa. A bem da verdade não queria ir morar na Europa. Dinorá não concordaria em abandonar a escola e as creches, seu emprego na Du Loren e toda ajuda beneficente.

Sentei-me à mesa com Doutor Arlindo. Ainda estavam presentes Fabíola, minha secretária, doutor Costa, do financeiro, Ângela, secretária de doutor Arlindo e Gomes, da publicidade e estratégia.

“Fausto, não conto com mais ninguém além de você para essa empreitada!” – disse doutor Arlindo.

 Sorri, de forma a mostrar que eu não me sentia à vontade para deixar o Brasil, mesmo que por dois anos, devido a todas as responsabilidades assumidas aqui.

“Arlindo, eu não sou o mais indicado para essa função. Posso cuidar da indicação de alguém mais gabaritado para essa abertura...”. – falei temendo que ele não se desse por satisfeito.

“Não!” – respondeu ríspido. Dirigiu-se a Gomes.

“Já definiram a estratégia de lançamento em Portugal?”.

“Contratamos uma empresa de Cascais. Líder de mercado; vende sorvetes para esquimós!”.

Lembrei do branco. Das tonalidades de branco. Dos ursos polares.

Enquanto ouvia as risadas ao fundo, pensava em sair dali e encontrar aquela pessoa.


No final de tarde, após deixar o escritório, passei na locadora e aluguei um carro. O meu carro estava em manutenção, na oficina.    Dirigi-me ao Centro de Convenções no centro. Cruzei ruas e avenidas congestionadas e brilhantes. Estacionei o carro no grande estacionamento aberto à frente do Centro de Convenções. Desci e fiquei encostado no carro por alguns minutos. Impaciente olhava o relógio nervoso.


Distraído


Adormecendo.
 

Acordei assustado com luzes brilhando intensas. Ainda estava encostado ao carro e percebi que havia cochilado em pé ali mesmo. Um zumbido alto quase como uma microfonia arrebentava meus tímpanos. Abaixei levando as mãos ao estômago, pois parecia que por dentro de mim um alien me comia os órgãos. E era exatamente isso que acontecia. Levantei a camisa e lá estava ele! Uma peste cabeluda que parecia ter dentes por todos os lados tentava abrir uma passagem por meu estômago dando mordidas e arrancando nacos de carne e gordura. Segurei-o apertado e o levantei diante dos olhos. Ele babava e deixava escorrer sangue, meu sangue, pelas bocas todas.

Atirei o bicho longe, praguejando contra todas as espécies de bichos peçonhentos.

Foi quando a luz ficou mais intensa e então notei que essa luz vinha de um objeto estupidamente indescritível. Uma maçaroca de ferros entrelaçados de cor ferrugem, que lançavam faíscas luminosas como soldas elétricas.

Olhei pra todos os lados procurando por alguém que pudesse ver o que eu estava vendo que entendesse o que eu estava entendendo, ali naquele pátio de estacionamento.

Tudo estava deserto e a noite já ia alta. Ao me afastar do carro, seu alarme disparou e os sons então se confundiam, dos ferros, do carro, da noite.

Parecia que eu estava de volta a algum lugar por onde já havia estado antes e só o que eu tinha certeza é que não havia saído do país e que a polícia provavelmente já descobrira os corpos de Dina e Sinésio. Caminhei em direção aos ferros, segurando a barriga que sangrava e deixava um rastro vermelho escuro no chão. Aproximei-me do que parecia ser uma...um...amontoado de ferros, e fui seguindo seu contorno. Cheguei a uma abertura por baixo do casco de ferros e realmente parecia um objeto ficcional de Spielberg. Tateei a procura de uma entrada, passando os dedos em suas frestas amassadas. Pensei depois de um tempo que podia ser uma brincadeira, alguém queria me deixar nervoso, ou que alguma equipe de cinema estaria filmando por ali e eu entrei no meio da cena. Mas aparentemente estava enganado. Uma porta se abriu.

Com aquele som típico de uma nave alien abrindo sua porta, com toda fumaça e vapor e ruídos de metais friccionados contra metais.

Fiquei no aguardo de algum grande ator de cinema sair por ali ou uma dessas gostosas que são sucesso de bilheteria. Mas o que aconteceu não é possível descrever. O que saiu por aquela porta superava em tudo meus piores pesadelos. Uma figura grotesca, redonda coberta de espinhos que retraiam em sua pele como se fosse sua respiração. Fiquei estatelado vendo aquele monstro saindo de uma bola enferrujada e retorcida de ferros sem acreditar que aquilo fosse possível.

Pensei comigo “Que diabos é isso? Estou sonhando?".

A figura saiu completamente do objeto e me fitou com aqueles olhos de ferro cintilante, que no escuro da noite pareciam labaredas adormecidas e faiscavam soltando pequenas luzes vermelhas amareladas.

Veio em minha direção e eu me afastava quanto mais perto ele chegava.

O que é você?” – perguntei.

O ser apenas ficou parado em minha frente hesitante. Achei que fosse ser devorado por ele e que ninguém mais saberia de meu paradeiro, nem a polícia, nem os inimigos nem as amantes.

Olhei para trás e lembrei do carro em que estava encostado. Corri em direção a ele e por um breve segundo olhei para trás, para ver o monstro. Tão rápido olhei, mas quando virei para o carro, ele já estava ali na minha frente e foi impossível parar, quando me dei conta, estava abraçado a ele, e ele fungava em meu rosto um hálito de fumaça e cinzas e então desmaiei.

A minha epopéia tinha início e a noite não poderia estar mais estrelada.  A luz da lua criava contornos prateados na pelugem metálica-pelúcia de meu estranho predador.

Ao acordar senti-me flutuando. Fui abrindo os olhos devagar e procurava saber onde estava, o que acontecia. O "ser" de ferro era macio e me carregava no colo para dentro de seu veículo. Abaixou-se ou encolheu-se, não sei ao certo e adentrou a porta que se abriu como se desmanchasse no ar. E dentro era um lugar gigantesco. Com outros "bichos" como ele passeando pra lá e pra cá. Ele me desceu alinhando-me ao chão e de repente eu estava ereto olhando para cima para a cara estranha da fera.

"Não vai perguntar o que está acontecendo?".
...

 "O que está acontecendo?". - perguntei.

"Você está em meu veiculo transportador."

Parei pra pensar e não vinha pensamento nenhum.

Perguntei: "Você tem um conhaque?".

"Sim. Venha".

Andamos o que me pareceu quilômetros até chegarmos a um lugar onde outros iguais a ele estavam sentados formando um círculo e todos pareciam rir e fumaça saia de seus sorrisos.

Eles estavam felizes e riam e olhavam pra mim e riam mais alto ainda. Eu estava engasgando com tanta fumaça sorridente que em determinado instante eu levantei e gritei: "Dá pra parar com essa festa?"

Todos pararam de rir na mesma hora e sincronizados rangeram os dentes de aço.

Meu amigo monstro tirou de dentro da barriga uma garrafa de bebida e jogou para mim. Olhei dentro dela e havia um botão de rosa. Abri a rolha e tomei um gole e foi a melhor bebida que havia experimentado em anos. Em segundos estava bêbado.

Ele falou sem pontos ou parágrafos:

"De onde venho você é um animal de estimação muitos de nós possuem um igual a você para brincar morder matar ou mesmo empalhar e deixar sobre a estante temos um processo de encolhimento que torna muito útil fazê-los pequenos para guardar na barriga ou transformar em amuleto e as fêmeas os usam para se masturbar esfregando-os com força na planta do pé e depois urinam sem parar por cinco dias e choram alto chamando-os pelo nome até que se cansem e os comem mastigando lentamente por mais cinco dias."

Fiquei boquiaberto. Por mais insano que fosse não conseguiria imaginar uma estória daqueles. Não contive a gargalhada e rolei no chão de tanto rir. Enquanto ria sem parar, os bichos ergueram-se e vieram para perto de mim. Todos tinham mais de dois metros de altura e eu me senti numa quadra de basquete do hospício. Meu amigo falou:

"Aqui é muito deselegante rir da raça".

Mas eu não conseguia parar. Perguntei: "_Onde estão as fêmeas?". E desandei a rir mais alto. Os bichos afiaram os dentes e as garras dos sete dedos. Não me preocupava se iriam me atacar ou me esquartejar.
De repente ouvi uma voz muito doce. Deitado no chão ainda sentindo a dor na barriga aberta e no fim das risadas, notei como eles iam se afastando, abrindo espaço para uma outra fera, uma fêmea me pareceu, senti pelo cheiro, que pensei, deve ser urina de monstro. E desatei a rir novamente.

"Você não sabe que quando ri nos mata?"

Fui levantando devagar, apoiando as mãos e o joelho no chão do "veículo transportador" e fiquei de pé. A doce monstro segurou minhas mãos, me puxou lentamente para perto. Agarrou-me abraçando e todo o seu pelo era suave, macio e quente. Sussurrou em meu ouvido. "Você não está louco".

Lembrei que tinha uma reunião, que havia uma reunião e não sabia se havia dito sim.

Ela disse que eu havia dito sim.
Falava dentro de minha cabeça.
Deu-me vontade de fazer amor com aquela criatura gigante então lembrei que ela sentia prazer na sola dos pés. Desvencilhei-me suavemente e abaixei-me. Ergui sua perna delicadamente e esfreguei a planta de seu pé. Ela foi caindo, ficando menor, seus pelos retraindo-se, sua pele tornando-se alva, seu cheiro adocicado e seus sussurros como gritos baixos e roucos, soltando fumaça pela boca e o cheiro da fumaça agora era de hortelã.

Ela foi aos poucos se transmutando, transformando-se em uma mulher, de pele clara, pele perfumada de murta, de lírios, avencas e mais hortelã. Quase desmaiei de tanto odor, de tanto perfume. Os outros monstros ao redor também foram se deitando e eu pensei que estava provocando algum êxtase coletivo de orgasmos monstruosos.

 

Ao final, estava eu também deitado acariciando os pés do monstro fêmea e quase adormecido. Meu amigo levantou-se de repente e disse que tínhamos que caminhar para "o lado". Assenti que sim e percebi que estava ainda em coma pelo orgasmo que havia sentido alguns minutos atrás.
Segui o amigo fera e enquanto caminhávamos, ele me contava sobre seu povo de Ava Garden. Disse-me que estavam de férias passeando pelo Universo e que suas férias duravam 100 anos. Já vinham a 90 anos procurando pelo planeta dos vermes humanos. Finalmente aportaram por aqui com muita sede.

Saímos do circulo de monstros e o sol estava a pino. Havia um campo verde que se estendia longínquo e ao final dele, um grande lago. Fomos caminhando o que pareceu uma eternidade. Ao nos aproximar, me deu vontade de cair na água e nadar um pouco. Tirei a camisa ensangüentada e as calças rasgadas, os sapatos carcomidos, as meias esburacadas e atirei-me nas águas mansas. Dentro d’água, após algumas braçadas, olhei meu amigo abaixar-se e enfiar a cara no lago. O que pareceu mais de meia hora ele ficou ali mergulhado. Senti que meus pés tocavam o chão do lago e que de repente a água estava em minha cintura. Notei os peixes pulando ao meu redor e muitos deles correndo em direção à margem. A água havia atingido meus tornozelos e eu gritei do meio do lago tentando chamar a atenção de meu amigo. Mas ele só parou quando não havia mais água nenhuma. E os peixes se debatiam e eram tantos que perdi a conta. Caminhei pelo lago vazio até a margem e praguejei contra aquela espécie Ava-gardiana morta de sede da porra!

Caminhamos lado a lado novamente em direção ao que parecia ser uma grande porta metálica e brilhante. Já próximos, ela se abriu lançando cinzas pelo ar e poeira. Ao sairmos, deparei-me com o estacionamento e meu amigo de metal fez um gesto de adeus desaparecendo por entre os ferros retorcidos e depois, flutuando de forma tão rápida, que levou segundos para desaparecer.

templário


 
não sou digno desse mar que me abraça

dessa areia que me respira

não mereço esse sol que me ameaça

ardendo em febre sobre a vida

nesse templo não sou digno

de divindade

sequer de uma centelha de agonia

e embora não bastasse o desejo

dessa morte antevista nos portais

persiste em toda veia esse sangue

ofertado noite e dia aos bestiais
 

sexta-feira, dezembro 12, 2014

Fragmento


 alma lusco-fusco

cinza das cores da tristeza

com que se vestem bufões,

fragmenta-se à noite das estrelas,

no trem vazio cortando a planície

rumo ao centro desértico das estações.

alma mármore

singular

cabisbaixa e angular

caricata das deformidades perenes

réu das normas e conceitos vigentes

sem bandeira rebeldia ou complexidades

sem alma dentro da alma

sem sementes.

corais


 
areia úmida e transparente

submersa e viajante

nas águas turvas

feito sementes

brancas e claras como a lua.

 

olhos de peixe

nublado nas ondas da chuva

agonia de algas

corais e pedras brilhantes;

 
sal e tormenta em vagas

borbulham nas ondas que dançam

em movimentos circulares,

choram sedentas e mansas

lágrimas de mar e aliança

com segredos de estrelas lunares.

quarta-feira, dezembro 03, 2014

A Mágica do jogo de Espelhos

Prelúdio:


Anotações para Museu Arquivo

214.01 Iniciando processo – Tese Pós Doutorado em Biologia Genética – Resumo das condições de vida e quadro geral das condições de sobrevivência.
214.03-Resumo dos últimos meses:

“Não contamos o tempo e não importa o lugar. Talvez aqui, mesmo não sabendo onde é aqui”.

A ciência progrediu assustadoramente em três mil anos. O planeta está murcho como uma fruta sugada até o fim. A lógica não funciona nos moldes da Filosofia, guerras químicas secaram o solo, destruíram a vida, alteraram o cotidiano, destruíram o planeta.

Vive-se cada vez menos e cientistas concluíram, através de muitos estudos, durante oss séculos, que uma peste bacteriana, incorporou-se definitivamente nos compostos naturais do planeta. A solução foi desenvolver métodos de implantes genéticos para combater a velhice precoce e o curto tempo de vida; construir máquinas esterilizadoras, que precisavam ser constantemente acionadas. Os humanos vivem em média vinte anos, em cômodos apertados, hermeticamente - fechados e povoados por máquinas, como se dentro de um casulo, um labirinto de casulos.
O processo de enxerto genético tornou-se a principal tecnologia de sobrevivência, mas trouxe também suas sequelas. Para ativar o pensamento, foi sintetizada uma proteína catalisadora do raciocínio. Através de pesquisas exaustivas durante anos, chegou-se a um composto: O ADR (Adrenalizante Cerebral), capaz de ativar uma ampla rede neural correspondente à lógica.
A partir das experimentações com o primeiro composto ADR, as descobertas científicas realizaram "saltos gigantescos" em poucas décadas, muito embora ainda não tenham encontrado soluções para a degradação progressiva e devastadora do Planeta, em virtude das mutações genéticas intercambiáveis. Com a criação do ADR, vieram também outros tipos de problemas: a droga do raciocínio, além de causar vício, uma vez ingerida, também produzia efeitos colaterais, levando seus usuários a viagens psicodélicas prolongadas e incontroláveis.
 
Uma parte da Terra vive às escuras, numa noite eterna; a outra, sob o sol constante. Uma leve alteração no eixo de rotação do planeta, devido à reverberação sônica que adveio com a explosão de Júpiter, pôs fim a 90% da civilização humana e alterou radicalmente a geografia desenhada pelos antigos continentes e oceanos. O Planeta permanece dividido em dois hemisférios: não mais Norte e Sul, mas Lado Escuro e Lado Claro, como são chamados.


O Lado Escuro, sem motivo aparente que justifique tal condição ambiental, está limpo das bactérias - e, ao que se supõe, de outros organismos também. Já o Lado Claro, está infestado delas, de modo que a raça humana que o habita, vive em um abismo sem fim: as bactérias do ar cercearam a vida dos seres. Os mares se expandiram tanto, que as terras se dividiram. Foi necessário quase mil anos para que a raça humana remanescente se reorganizasse efetivamente e os cientistas produzissem o ADR, isso em meio a todos os problemas ecossistêmicos, psicossociais e à avassaladora peste de bactérias mutantes, que além de restringir (e destruir) vidas humanas na Terra, ironicamente também o fez com os antígenos causadores de outras doenças, pois que os destruiu também. A escolha pela sobrevivência no Lado Claro deveu-se em muito pelo difícil acesso ao Lado Escuro. A travessia por um oceano gigantesco e caudaloso, infestado de monstros marinhos mutantes, impediu que as raças momentaneamente separadas, pudessem se encontrar. O acesso ao Lado Escuro levou algumas centenas de anos.

O governo está centralizado, mas o poder não é totalitário, absoluto. Devido o fato de não haver “noite” – a sociedade se organiza de forma anarquista, dormindo e acordando conforme seu corpo manifesta cansaço ou disposição, sem horários pré- determinados. A fome de viver consiste em arquivar mais e mais informações acerca das condições de sobrevivência da espécie e então, morrer.

A Falha Genética, como ficou conhecido o fenômeno da infertilidade feminino-masculina, tem inviabilizado o nascimento biológico de bebês há alguns anos. Isso veio acontecendo aos poucos, até que um dia, deram conta de que já não existiam mais crianças. Ainda se nasce pelo processo in-vitro, mas não mais a partir do encontro entre óvulo e espermatozoide naturais. Há uma gama de genes e substâncias organo-ativas que, devidamente combinadas, asseguram a procriação da espécie, abreviando em muito o tempo de maturação que um filhote da espécie humana pura necessitaria para se desenvolver. Nascemos em idade avançada.”



Em Abril

234.02-Iniciando processo
“Estou relatando os acontecimentos do último Dia do Aviso. A criatura oferece resistência extrema. Lembra-me a violência com que reagimos instintivamente quando ameaçados. Seu corpo pequeno, cerca de meio metro de altura e aproximadamente 30 quilos, está sujo e deteriorado em algumas partes: fede como podre. Profere palavras ininteligíveis à minha compreensão. Pergunto-me sobre a violência de suas reações e não encontro respostas. Possivelmente represento uma ameaça para ele, mas não utilizo de gestos bruscos, tampouco me porto agressivamente. Mas receio que vá perder o controle, pois também possuo instintos e, às vezes, me vêm ao pensamento um desejo homicida de por fim a este selvagem infantil. Contudo, preciso pesquisar chegar ao coração dele, se é que ele o possui."

234.03-Reabrindo arquivo: intercorrências
"Ontem, após o Dia do Aviso, recebi a visita de duas médicas. Uma delas me abraçou e me beijou na orelha e na boca, enquanto a outra se deitou no divã: enigmática, entre risos, ficou nos observando. Em dado momento, o selvagem me agrediu nas pernas, com os dentes à mostra, a me morder e eu tive vontade de chutá-lo. Cheguei a sacudi-lo com força, mas não continuei porque as duas médicas, aos gritos, passaram a me censurar dizendo que eu havia perdido a cabeça.. Nesse instante, um réptil elétrico, não sei vindo de onde, avançou sobre o selvagem. Talvez tivesse entrado em meu cômodo e se escondido, enquanto eu voltava do Dia do Aviso. Eu o interceptei a tempo de evitar que algo mais grave acontecesse com meu truculento objeto de estudo: consegui imobilizar o elétron-reptiliano no chão, mas fui picado várias vezes e a dor foi terrível. Agarrei o réptil nojento e o atirei na parede, mas ele avançou novamente enquanto eu protegia o pequeno selvagem.

Com a criatura nos braços a me morder e o réptil nas pernas a me picar, a dor foi tanta, que acabei ficando anestesiado, sentindo apenas o gosto adocicado nos lábios, sobras dos beijos da médica que me excitara momentos antes. Quase desmaiado, pude ainda ver quando a médica do divã abateu o réptil, foi pouco antes de apagar completamente.”

234.05-Notas esquizoides
“São as escadas. Tudo está na mente. Às vezes caio no abismo ou então mergulho dentro dele. Anotei coisas em papéis do governo, mas amassei e joguei tudo fora depois. Foi o adrenalizante... o maldito ADR. Todos sabem, todos sabem... sem ele seríamos completos inúteis, com ele também...
Eu tenho essa criatura aqui e é muito complicado explicar. Estou fazendo um estudo bio-comportamental do selvagem e percebo que sou igual a ele. E esse maldito Dia do Aviso, quando somos obrigados a sair de nossas cabinas, isso me irrita muito: a cada ciclo, a mesma perda de tempo... Por que nos expomos a isso? Pra quê?


O selvagem... a criança... percebo semelhanças óbvias. Somos iguais a ele. Eu e todos os outros aqui, nesse inferno sujo.”
254.08-Recuperação e Retomada de Arquivo
Cheguei ao fim de uma temporada sob tratamento intensivo. As picadas que levei do réptil elétrico me deixaram muito doente. Encontrei-me com Lylách. Ela trouxe minha dosagem depósito de ADR e eu consegui pensar um pouco. Fizemos sexo violento."

254.32-Reunião Inesperada
“Recebi visitas e eu não estava preparado. Minha máquina de esterilização deu problema e eu precisei ligar urgente para a Equipe Técnica do Centro de Esterilização, um departamento do Instituto de Proteção que presta serviços de emergência. Eles vieram em dez minutos e concertaram em mais dez, após os quais, pude finalmente receber meus amigos: depois de tanto tempo desprotegidos do lado de fora, já estavam cansados de esperar e, provavelmente, contaminados. Da própria sujeira do ar das máscaras. Usaram a máquina e pudemos nos divertir um pouco. Como se sabe, é proibido por lei sair das cabinas de proteção depois do toque de recolher, uma vez que nesse período novas substâncias antibiotóxicas são testadas. Mas, clandestinamente, fazemos algumas reuniões, tomamos ADR alterado e conversamos sobre vários assuntos.
Os caras do Centro de Esterilização ficaram olhando para meus amigos, mas nada disseram. Respeitaram minhas divisas de Médico Chefe do Centro de Pesquisas."


254.75-Dia do Aviso
"Estamos todos reunidos no pátio em frente ao grande Edifício do Congresso, ouvindo os intermináveis discursos do governo sobre as futuras intervenções para contenção das novas bactérias descobertas, tendo ao fundo, os clássicos de Morfarrjedg. Foram distribuídas novas máscaras e os comprimidos de estagnação molecular. Mas, como todos nós sabemos, as máscaras não isolam totalmente, não conseguem conter a fúria bacteriana que infesta o ar com novas formas e tamanhos. E os comprimidos de estagnação nos deixam por poucas horas com a mesma bio-composição das bactérias, impedindo a contaminação. Às vezes, me pergunto se vale à pena tudo isso: tanto ADR, tantos antibióticos venais profiláticos, tanta esterilização insulínica... então me lembro que, em meu abrigo, tenho uma criatura, um pequeno selvagem que foi trazido na última expedição ao Lado Escuro da Terra. E é tão importante para mim conseguir descobrir como ele sobrevive: sem luz, sem dispositivos antibacterianos, sem ADR...

Qual será sua defesa e por que ele se mantém irredutivelmente violento, uma vez que meu tratamento não é dos mais perversos?... Segundo sabemos, não existem mais crianças. E o selvagem é um dos habitantes perdidos, que vive do Lado Escuro...

Mas nada sabemos do Lado Escuro.

Pausa (...)

257.17-Continuação - Dia do Aviso
“Não aguento mais estes clássicos. Preciso ouvir TecnoSharkall em minha claustrofóbica cabina de proteção.”


257.22-Lylách grávida

"Como pode?!
Não existem grávidas no planeta, pelo menos não desse Lado do planeta. Fico imaginando o que sairá daquela barriga... sabemos tudo sobre estas pseudo-grávidas, sobre ventres que não geram nada, a não ser vermes e mais bactérias. Se é verdade que os genes humanos foram irreversivelmente enxertados, a Engenharia Genética encontrou seu fundo. Testamos tudo o que foi possível. Sei que Lylách está aflita. Mesmo assim ela ainda pensa que pode gerar um filho dali. Mas não existem mais crianças. Não existem mais. Acabaram-se, com o tempo. Além disso, a atmosfera bacteriana alterou todos os nossos processos fisiológicos. Encontramos um meio difícil de reprodução em laboratório, substituindo várias características de um DNA original e ocupando os espaços vazios deixados pela falha genética. Somos criados em laboratório. Pelo menos 75% de todo nosso corpo é uma combinação matemática - ainda sob influência do acaso - feita em laboratório. Os cientistas que desenvolveram este processo, com o tempo, optaram por dar maior desenvolvimento ao cérebro, tornando-o mais racional e desprovido de emoções. Mesmo assim, com toda a inteligência e a mente funcionando intensamente, ainda não encontramos um meio de solucionar o problema da esterilidade humana e descobrir meios de garantir a procriação da espécie fora das quatro paredes do laboratório. Alguns cientistas afirmam que a natureza revoltou-se contra nós, que desenvolveu meios de, a cada investida cientifica, alterar-se mais e mais para escapar à destruição. Ingênuos, será que não conseguem ver para além dessa dualidade? Mas isso não importa. Sou um biólogo geneticista. Não devo me preocupar com isso. Além do mais, a vida é muito curta e já tenho preocupações por demais. Prefiro meu ADR, isso sim ainda me dá algum entusiasmo. Estou sentindo aquela sensação estranha, a qual denomina-se no Museu Arquivo de pena. Tenho pena de Lylách."

259.39-Carta de Autorização
"Estou seriamente compelido a abrir o selvagem. Talvez uma injeção de flúor ativo. O bastante para abri-lo. Hoje de manhã, ele vomitou novamente em cima de mim. Senti-me estranho. Não sei mais o que ele quer. Nós: eu, Lylách e outra novata, demos um banho de sal no pequeno monstro. Precisamos esterilizá-lo duas vezes por dia. Ele está mal. Tivemos que adaptar uma focinheira para que ele não nos mordesse mais. Fizemos uma reunião à tarde, com os técnicos do DGA (Departamento de Genética Avançada). Foi uma calamidade. Lylách havia ingerido muito ADR e não conseguia se expressar coerentemente. No final, ficou decidido que podemos fazer com o menino todos os exames necessários, mesmo que intrusivos. Isso significa incisão cerebral e retiradas de partes. Não gostei muito disso. Na verdade, quero estudar o sexo dele.”

“Vou abrir seu saco escrotal e retirar amostras de espermatozoides.” ·.
Em Setembro

260.00-Renomeado arquivo - Operação Gen&amp-amp-T
"Terminamos o estudo preliminar. Ele não está muito contente. Parece que agora se acalmou um pouco. Mesmo depois de abrirmos algumas partes do seu corpo, ele parece estar mais calmo. A operação foi totalmente gravada para o Museu Arquivo. Uma equipe médica muito volumosa fazia parte da plateia, gerando um certo tumulto, que foi logo contornado pela guarda do centro de recuperação. Ao fim, ensanguentado, pedi alguns minutos para me recuperar e logo depois voltei ao trabalho. No entanto, tivemos que suspender os estudos pela tarde. Lylách estava muito mal. Levei-a para o centro médico auxiliar, desativado há alguns anos e reinaugurado em abril. Ela está sob observação. Ao que parece, está no quinto mês de gestação de "sabe-se-lá-o-quê". Os médicos estão assustados. Dizem que isso não acontece há mais de 500 anos: uma mulher chegar ao quinto mês. E viva!.
Voltei para o meu abrigo. Tive que passar a noite ouvindo gemidos do selvagem. O efeito do flúor ativo está passando, então a dor vem queimando a carne. Passei por isso, quando precisei substituir os pulmões. Já experimentei o flúor ativo. É terrível."

265.03-Operação Gen&amp-T: segunda fase


"O selvagem gritou muito durante a noite. Tive que colocá-lo na câmara de gás. Ele dormiu depois, quando já era madrugada. Mas eu não consegui dormir mais. Vesti a roupa térmica, coloquei a máscara JY-8 (azul) e fui para o Centro Médico. Procurei por Lylách. Ela estava acordada também. Nós conversamos um pouco: ela me pareceu muito magra para uma grávida. Em alguns momentos, ela delirava pela falta do ADR, então tinha convulsões, babava e tremia todo o corpo. Não que eu sinta amor por Lylách, não é isso. Aliás, isso nem existe mais. Esse é um dos sentimentos-palavra que estão no Museu Arquivo. Apenas senti muita raiva-incompreensão dela; afinal, ela deixa que eu a use sexualmente. Eu também permito que ela me use. Temos um acordo aprovado pelo governo, com todos os papéis em ordem.
Em certo momento, no Centro Médico, gritei para ela enquanto um dos atendentes me segurava por trás, impedindo que eu pulasse sobre a cama: ela espumava e se debatia em sua crise de abstinência. Eu disse:_ "Sua estúpida!!! Tínhamos um acordo.”_  Mesmo sabendo que de alguma forma, não era culpa dela - Eu só queria apertar a barriga dela e tirar dali aquele intruso, mas os seguranças não deixaram. Saí do centro médico arrasado.
Voltei para o abrigo e o selvagem estava tenso. Adentrei o campo magnético e fui até ele: olhei fundo dentro de sua íris amarelada. Subitamente, ele me olhou também. Naquele momento, senti um calafrio: ele estava olhando para os meus olhos, talvez através dos meus olhos e, de repente, sua expressão modificou-se visivelmente, como se pudesse ver a si próprio através de mim ou algo em mim que o intrigasse. Aparentemente impossível, mas ele parecia estar pensando... talvez pensando sobre mim. Ou quem sabe sobre ele mesmo?... Ele então se ajeitou de cócoras, com os braços esticados ao longo do corpo, pernas ligeiramente afastadas, e continuou a me olhar por um bom tempo... a certa altura, entre divagações e vertigens, resolvi sair dali. O ADR provavelmente tinha me impregnado de novo, gerando um efeito de ilusão especular e confusão de sentidos.
Penso que talvez vá ter que abrir a cabeça dele. Isso me desnorteou. Mas eu preciso dar respostas à Comissão de Inquérito do Governo e até agora não encontrei nada. Não descobri nada: somente especulações. Não temos mais opções de estudo, a não ser analisar as amostras do tecido cortical e a anatomia interna dos órgãos vitais. Talvez o ADR não esteja sendo suficiente como estímulo disparador de ideias novas, uma vez que o vício aplacou toda capacidade de raciocínio espontâneo. Seja você um selvagem, um menino ou uma fera: não há remédio! Vou perdê-lo para sempre.”

265.99-Lylách - Sétimo Mês


"Lylách entrou em coma. Os médicos dizem que não podem fazer mais nada por ela. Dentro dela, da barriga dela, existe uma criatura viva. Abolimos os processos X-r para sabermos o que está ali dentro e não existem mais equipamentos desse tipo, mas sabe-se que é uma  homo criatura e que está viva. Ouve-se o coração através dos aparelhos. Tudo é muito ilógico. Lylách... como isso veio a acontecer?”

267.00-Novatórias do Dia do Aviso
"Foi determinado hoje, que uma nova expedição sairá daqui a três meses para o Lado Escuro da Terra. Eu estive pensando em me inscrever para ir também. Não sei... não sei...Estou confuso ainda."

267.57-Operação Gen&amp-T - terceira fase


"Abri o selvagem hoje pela manhã. Ele me pareceu ter chorado, concluí depois. Ali, na mesa fria, com aquelas luzes de alumínio e todo aquele plástico derretido, pensei:_ Não há mais futuro para o que restou da raça humana. O cérebro do menino era lindo: limpo de bactérias. Não estava contaminado como os nossos. Retirei amostras vivas. Fui pressionado a isso. À tarde, depois de levar os exames para a máquina de análise em varredura, voltei para o abrigo. O selvagem estava  morto.  Morreu pálido e triste."

268.77-Final de Arquivo
"Estou inscrito no programa expedicionário. Passei pelos exames preliminares. Não suporto mais meu abrigo. Estou com 17 anos, tenho mais poucos anos de vida... Com todos os enxertos genéticos que adquiri isso é certo. Não posso perder mais tempo. -Tempo é o que não posso perder."


269.00-Lylách


"Faleceu ontem à noite... deu à luz... ela não sentiu nada, estava em coma fazia dois meses.
A criatura é horrível. Nasceu envolta em uma gosma branca. Os médicos estão mantendo a criatura viva, submersa em um tanque de regeneração à base de ácido fluorídrico. Aparentemente está em fase de progressão biológica. Tornou-se uma celebridade, mas ninguém acredita que vá viver muito tempo. Talvez eu precise fazer alguns exames escrotais antes de partir com os expedicionários. Querem saber o que eu tenho aqui embaixo, entre as pernas. Eu e mais quinze pessoas. Lylách estava em contrato com muitas outras gentes. Ela tinha quinze anos. É mesmo uma - pena-. Perdi Lylách pra sempre. Senti muita raiva-incompreensão...  Depois, sentimentos confusos sobre mim."

terça-feira, dezembro 02, 2014

Atemporal

A vida gira atemporal
num giro doido
atraindo moscas e humanos
quase sempre pelo vício da vida
em prosa circular
(a vida é um poema inacabado).

Quisera a vida me tinha inteiro
não morto aos pedaços
mas inteiro
essa vida viveria mais vida
não seria réptil lacrimoso
nem bicho de aguaceiro
seria vida vívida de sorte e cheiro.

Magoa
Magoa
choram as águas
e não há vida
que resista a tanto zelo...

Primeira Partilha

Visão
aproximação
algo brilha
se desloca
do corpo
feito um íris
se desloca
do corpo
em arco-íris
sai ligeiro

visão
aproximação
clima tenso
o céu se dobra

no corpo
parte-se o cordão
alguém chora

serei eu?