segunda-feira, junho 28, 2004

Mutações

"Terminaram as festas de Shakespeare..." O telegrama acrescenta que "o delegado norte-americano teve grande manifestação de simpatia". A doutrina de Monroe, que é boa, como lei americana, é coisa nenhuma contra esse abraço das almas inglesas sobre a memória do seu extraordinário e universal representante. Um dia, quando já não houver Império Britânico nem repúplica Norte-Americana, haverá Shakespeare; quando se não falar inglês, falar-se-á Shakespeare. Que valerão então todas as discórdias? O mesmo que as dos gregos, que deixaram Homero e os trágicos.
Dizem comentadores de Shakespeare que uma de suas peças, a Tempest, é um símbolo da própria vida do poeta e a sua despedida. Querem achar naquelas últimas palavras de Próspero, quando volta para Milão, "onde de cada três pensamentos um será para sua sepultura", uma alusão à retirada que ele fez do palco, logo depois. Realmente, morreu daí a pouco, para nunca mais morrer. Que valem todas as expedições de Dongola e do Transvaal contra os combates de Ricardo III? Que vale a caixa egípicia ao pé de tres mil ducados de Shylock? O próprio Egito, ainda que os ingleses cheguem a possuí-lo, que pode valer ao pé do Egito da adorável Cleópatra?
Terminaram as festas da alma humana.

por Machado de Assis em 1896

Nenhum comentário: